Estou emocionado. Acabo de ler a última página de "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust, "O Tempo Redescoberto". Sim, eu nunca tinha lido Proust, confesso, a não ser o primeiro volume, "No caminho de Swann", mas depois deixei cair e não continuei. Pois nos últimos cinco meses não fiz outra coisa senão ler a obra completa de mais de 3.000 páginas e, agora que acabei, tenho vontade de começar de novo, como se a vida se me esvaísse e eu precisasse de novo alento. Fechei o livro como se perdesse um amigo. Como pude viver tanto tempo sem conhecer este grande herói da solidão da arte que nos ofertou sua própria vida, uma vida que ele viveu "fora" da vida mesma, solitário observador na malta de mundanos quando freqüentava a sociedade frenética dos salões da Terceira República francesa, ainda com os ecos do Segundo Império? Aquela sociedade, que era a perfeita lente de aumento sobre as paixões e vaidades rasteiras em sua aparente sofisticação, ali, antes e durante a Primeira Guerra, uma sociedade oscilante entre a aristocracia decadente e a burguesia afluente, num jogo de fascínio e desprezo mútuos, ali, no começo do anti-semitismo do século XX e das tragédias que iam culminar em Hitler e que deixou rastros até hoje.
Proust ilumina o momento mais fecundo do modernismo, ele, um cubista dos sentimentos, sob o mesmo vento que batia em Joyce, Picasso, Freud, Einstein, vergado sob a relatividade do espaço-tempo, sofrendo a explosão do Sentido, a irrupção do Inconsciente. Mais que Joyce (perto de Proust, ele parece um frio fazedor de trocadilhos), ele inventa a literatura moderna.
Na vida que levo, comentando a vergonha de nossa política, em meio à decadência da arte, da cultura morna e paralítica, ao lê-lo, tive a sensação de alguma coisa relevante, alguma coisa que toca o "real" e que raspa o mistério sempre inalcançável da existência, a presença arrebatadora do sublime, no sentido que Kant deu à palavra, emoção que em literatura, que eu me lembre, só tive com Shakespeare e com a "Ilíada".
O leitor vai torcer o nariz e perguntar, irritado com meu entusiasmo: "Mas, afinal, por que? Qual é a dele, desse tal de Proust, que dizem que era veado?"
Não quero fazer filosofia barata em cima dele, pois ele escapa a qualquer síntese, como a própria vida. Mas acho que "a dele" era a seguinte: Proust encetou uma tarefa impossível - atingir o real. E a beleza trágica dessa impossibilidade acendeu a luz irradiante da obra. Ele busca a dissecação dos sentimentos pela poética, assim como Freud, na tradição científica. Proust fez a geometria das emoções, descrevendo ciúmes, amores, inveja ou medo com a nitidez de um teorema, com a limpidez de um mapa de geógrafo. Irritava-se quando diziam que ele era um microscópio dos detalhes, pois queria descobrir leis, regras fixas que resumissem a estrutura dos comportamentos.
Que imensa coragem a sua marginalização escolhida! Que solidão! O que fez esse homem ficar à margem da vida, vivendo-a, no imenso sofrimento de tudo ver e de nada participar, diante da feliz insanidade dos homens comuns, ele, uma bicha solitária em pleno preconceito dos anos 10, ele, com uma sensibilidade que doía a cada ridículo, ele que transformou a própria anomalia em arte total, ele que escreveu uma "Ilíada" interior, um Homero de aparentes irrelevâncias, sem fim nem começo, indo da infância até a morte num trajeto circular e recorrente, indo da natureza que examinava em detalhes até os salões de duques e príncipes, ele que se detinha nos irisados matizes de uma corola, desde o brilho róseo, lunar e suave das flores nos bosques até os tremores de cílios da vaidade, os lábios vorazes da glória mundana, a dentadura brutal do rancor, o esgar da inveja, o desespero da solidão sexual nos bordéis para masoquistas, a crueldade dos amores egoístas, o ciúme como tortura desejada, tudo em uma sociedade se contorcendo sob a luz negra da Primeira Guerra, Paris trêmula, com viciados sodomizando-se no breu dos túneis do metrô, sob as bombas dos aviões alemães, a bravura sem prêmio de soldados, a covardia de duques arrogantes, o horror do caso Dreyfus dividindo a sociedade em anti-semitas e democratas, o ridículo profundo que ele analisava com compaixão e sem dele se excluir, ele, que tudo via, com uma mente de Dante, de Homero, com o olho feminino e atento tanto para as nuances do vermelho Carpaccio das sedas da duquesa e dos azuis Veronese de um robe de Fortuny, como para a morte latejando nas artérias de príncipes envelhecidos nos salões, e sempre imolando a vida à arte, querendo deixar algum vestígio no Tempo, pensando não em leitores que o aprovassem, mas, generoso, para criar "leitores de si mesmos" (como ele escreveu), para ser uma espécie de lupa que lhes desse meios de se lerem. Essa é a sensação de vazio que me toma. Enquanto eu o lia, eu me lia, estava perto de verdades profundas, aparentemente tão rasas e mundanas. E agora que acabei, penso: "Que será de mim sem ele?" A mediocridade geral da República volta como uma maré suja, as notícias do erro nacional, as imagens da feiúra, a morte da beleza batem à porta.
Escrevo este artigo com sentimento de culpa (vejam vocês), pois estou falando de Proust em vez de Renan Calheiros... Que vão pensar de mim? Imagino o leitor: "Será que ele está querendo se exibir, bancar o culto? Como ousa falar de alguém ’artístico’ neste mundo em que a superficialidade da arte e da cultura está na razão direta da complexidade crescente da tecnociência?
É verdade. Talvez seja um pecado falar essas coisas. Proust vive em um mundo acabado, no início do século XX, quando ainda havia a extraordinária importância da arte, da pintura, música, literatura. E havia alguma esperança de Sentido, quando esse "sentido" já se esvaia e os grandes artistas do modernismo tentavam salvar o afogado. Talvez o maior êxtase de ler Proust resida em nos lembrarmos de como era a beleza, como era a esperança na arte.
E tem mais: nós não estamos no futuro desse tempo passado, não. Com todo o progresso da informação e da tecnologia, nós somos sua decadência.
2 comentários:
Dear Nancy,
Muito obrigado por postar este texto do Jabor a respeito de Proust. Como leitor do Estado não consegui encontrá-lo, porém, através do Google consegui encontrá-lo em seu blog.
Não diria que você está "perdida" no interior Brasil, afinal você encontra-se consigo mesma, através da percepção crítica, da arte e da sensibilidade. Estar no interior da Bahia ou de Idaho não significa nada para quem está conectado às coisas essenciais. Estou fazendo um Grupo Google sobre Proust bilingue (francês-português) e ver seu blog bilingue foi uma enorme satisfação e uma grande admiração. Você é um belo contra-exemplo da generalização ignorante que vários estrangeiros fazem dos "americanos", como se fosse possível juntar John Wayne e Orson Welles num mesmo saco.
antonio brito
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