sábado, 17 de maio de 2008

Arnaldo Jabor: Cinema americano louva a cultura da certeza

Isso nos faz saudosos do presente como se ele fosse um passado.

Fui ver o Iron Man (O Homem de Ferro). Saí do cinema e caí num grande vazio; depois daquele show de efeitos especiais, a cidade estava irreal. O filme é fantástico e inverossímel – tudo que eu queria ver no cinema, pois está cada vez mais difícil se iludir ou se horrorizar, com esta situação mundial espantosa. O público sai de alma lavada. Por quê? Porque se sente “protegido”. Saímos do cinema com a frase na cabeça: “Que seria do mundo sem os americanos?” “Vocês estariam perdidos”, nos dizem eles, “voltem a confiar em nós”. O filme americano atual quer restaurar nossa fé no Ocidente.

Ao contrário das obras comunas ou nazistas, que vendiam um “futuro”, um paraíso soviético ou um Reich de Mil Anos, os EUA vendem o “presente”. Americano não tem futuro. Só um enorme presente prático, feito de objetos e gadgets, serviços e sentimentos redentores. Por outro lado, nada é parte de um “complô” para nos “lavar o cérebro”, nada disso. Não é uma propaganda consciente. Não há Comitê Central nem CIA, por trás. Os americanos são um produto deles mesmos, acreditam no que dizem. A sinceridade é sua arma total. O verdadeiro cinema político é o filme americano.

Logo depois da Guerra Fria os filmes mostravam uma América em “frenética lua-de-mel” consigo mesma.

Com o fracasso do socialismo, que ainda lhes obrigava a alguma humildade, os americanos passaram a achar que “vida” e “América” eram a mesma coisa. “Ser” era ser americano. Nem o mais delirante filme de propaganda vendia a URSS com esta certeza.

A idéia de paraíso americano era a perfeição do funcionamento. Com o fim da Guerra Fria, os americanos ficaram meio desamparados, sem inimigos reais. Cultura paranóica não gosta disso. No mundo real, com a queda da URSS feito banana podre, com a globalização, veio impressão de que a história tinha acabado com final feliz americano. Os Estados Unidos eram o país da “cultura da certeza”.

Com o 11 de setembro, junto com as torres, caíram também a arrogância, o orgulho da eficiência. Deprimiram por uns anos, mas, depois da elaboração da derrota, retomaram a trajetória do mito americano e, assim como vão reconstruir as torres gêmeas, voltaram a fazer filmes para reconstruir o herói americano, tão humilhado nesta horrenda era Bush.

E os novos heróis não são políticos nem cowboys. Iron Man nos traz de volta o “homem-comum” que se transforma em herói (“você não nasce herói; você se constrói” – proclama o trailer).

O novo herói é um semideus com espantosa competência mecânica, praticante de um do-it-yourself épico, percorrendo “odisséias” tecnológicas.

Ele luta contra terroristas; não é a coletividade organizada. Quem vence é sempre o indivíduo sozinho e sua incrível competência para improvisar.

Antigamente, sofríamos durante a trama, esperando que os heróis ou amantes fossem felizes no final. Hoje, sabemos que tudo vai acabar bem, mas nos fascinam mais os infernos que eles terão de atravessar, para chegar a um desfecho fatalmente bom. A catarse chegará, mas antes temos amputações, temos bazucas estourando peitos, bombas, perigos e vemos que, mais importantes que as personagens, são as “coisas” em volta. Sim, as coisas. Personagem é só um pretexto para mostrar o décor. E o décor é um grande showroom dos produtos americanos, que são as verdadeiras personagens: maravilhosos aviões, os supercomputadores, a genialidade tecnológica.

Esses filmes são de uma eficácia assustadora, como seus heróis. Os roteiros são feitos em computador, de modo a não deixar respiros para o espectador. É preciso encher cada buraco, para que nada se infiltre na atenção absoluta. Os efeitos especiais são mais importantes que os conflitos psicológicos. Neste neo-cinema épico século 21, as personagens não fogem de um conflito; fogem dos produtos. Não importa o enredo; só o gozo da cena. O filme de ação busca na violência e nos desastres a mesma visibilidade total do filme pornô.

É uma nova dramaturgia de Hollywood: a estética do “videogame”, onde a personagem principal não é mais o “outro”, mas nós mesmos, com o “joystick” na mão e nenhuma idéia na cabeça.

Albert Camus escreveu que a América “odeia a idéia de morte, que tem de ser banida a qualquer custo”. Pois é; os filmes de violência e guerra, ao mostrar a morte nua em sua banalidade, sonham secretamente em exorcizá-la.

E pior: não adianta se refugiar na arte. O cinema de autor ficou mirrado diante de tanta homérica violência. A arte pressupõe uma imperfeição qualquer, uma fragilidade que evoca a natureza perdida; a arte inclui a morte ou o medo, mesmo no triunfo das estátuas perfeitas.

A destruição que vemos na vida, a sordidez mercantil, a estupidez no poder, o fanatismo do terror, o beco-sem-saída do fundamentalismo, a destruição ambiental, em suma, toda a tempestade de bosta que nos ronda está muito além de qualquer crítica. O mal é tão profundo que denunciá-lo ficou inútil.

Na arte atual, não há vestígios de esperança. Vivemos diante de um futuro que não chega e de um presente que nos foge sem parar. Isso nos faz saudosos do presente como se ele fosse um passado.

Uma espantosa nova linguagem surgiu e cresce como um “transformer”, como um “Megatron”, nas telas do mundo. E talvez só essa língua dará conta de nossa solidão, de nossa fome de ilusão. Não adianta buscar a bênção da arte. Só em filmes como Iron Man teremos o consolo do esquecimento.

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