O Globo, 18 setembro 2007
Temos de entender a psicologia social de nossos escândalos
Uma coisa me incomoda, me intriga nesta absolvição do Renan Calheiros: tanta é a indignação pública, tanta é a unanimidade em torno da ética contra os 46 senadores, que tenho a sensação de estarmos a analisar este fenômeno com instrumentos do passado. Ficamos tão "nobres" em contraposição à sordidez dos senadores que também desconfio. Eu mesmo roguei pragas bíblicas contra eles. Mas este fato é tão rico que deveria ser analisado sob a luz da ciência política, com uma postura menos indignada, pois a indignação se esvai como uma purificação e dá lugar a uma calmaria psíquica - a sordidez assimilada como mais uma desilusão. Esses 120 dias de cinismo e mentiras demandam pesquisa científica.
É fácil analisar os seis abstinentes comandados pelos sonsos Aloísio Mercadante e Ideli Salvatti. É fácil entender o mensalão mental que levou o PT e Lula a lutarem por Renan. É fácil entender pessoas de formação (não digo "marxista" para não sujar seu santo nome em vão), mas de formação mediocremente "socialista", enquistada em adolescentes dos anos 60 ou 70, o esquematismo subideológico que invadiu as universidades e o PT há 20 anos, transformando um partido que surgiu como fato novo num clube de ignorantes e oportunistas, comandados pelo rico lobista Dirceu. Ideli Salvatti, por exemplo, é a típica tarefeira sem opinião, que defende qualquer ordem do PT como se fosse uma mulher dedicada ao marido, mesmo que ele fosse assassino ou ladrão. Também é óbvia a derrocada depressiva de Aloísio Mercadante. Ele era esguio, bonito, filho de militar, com costas quentes, economista "orgânico" às ordens do partido, mas tinha um lugar límpido. No entanto, por mistérios do inconsciente, caiu para gestos obscuros, como o caso do dossiê na campanha contra Serra, chegando agora à tarefa humilhante de congregar os abstinentes, por ordens de Lula. É fácil entender a mente do pretenso "revolucionário" no poder. Em nome de uma causa, como fez Delúbio ou Silvio Pereira, se incriminam pelo prestígio dos chefes. Mercadante tem um bigode de Stalin ou Zapata, bigode "de esquerda" que evocava macheza e retidão, sem esquecer, claro, os bigodinhos com o desenho matreiro, que sugerem esperteza, rapinagem, de gente como Jucá e tantos outros bigodes nordestinos. No caso do Mercadante, explicou por que se absteve, seu bigode empalideceu e murchou de depressão. Os comunas do mal são fáceis de entender mas... e os outros?
A estética do baixo clero
Figuras que me encantam são os suplentes, como o Wellington Salgado ou o Sibá. Nunca tiveram um só voto. Por que Wellington defendeu tanto o Renan? Grana, não foi. Wellington é muito rico, dono de universidade, apesar de seu QI 0.5, incapaz de terminar um raciocínio, enquanto balança os cabelos ao vento, de terno, num mix de hippie com executivo. O ardor com que ele, Sibá, Almeida Lima e outros que defenderam os mensaleiros e o Renan mostra bem que eles professam uma ética sólida, clara, a ser estudada.
Intelectuais e jornalistas denunciam-nos em nome do "bem", como se eles fossem o "desvio" de uma norma, de uma ética que eles nunca tiveram. Eles são de outro país mental. Eles não pensam assim: "Eu sou um canalha, covarde, comprado por trinta dinheiros..." Não, todo canalha tem uma racionalização que os explica e absolve. Não se trata de "ética", é algo que vai além dela: é uma cultura secular, que se adapta a novos tempos e reage como mecanismo de defesa.
Sinto nesses parlamentares o prazer, a volúpia de ir contra o senso comum, contra o que a maioria pensa. Há uma ética sádica, de contrariar a população, de proteger uma obscuridade secreta, de defender o direito ao roubo, o direito à mentira como um bem precioso, um direito natural. Eles se banham na beleza de um "baixo maquiavelismo", no cinismo dos conchavos, atribuem uma destreza de esgrima às chantagens e manipulações. "Esperteza" é um elogio muito mais doce do que "dignidade". A resistência espantosa de Renan se explica como um "heroísmo" em prol do personalismo colonial atávico, contra a "violência" do que chamamos de "interesse público" ou de "democracia". Renan é um "defensor" dos que votaram nele.
Neste episódio todo, precisamos entender que o Atraso é um desejo, uma ideologia! Se a democracia se impuser, se a transparência prevalecer, como vão ser felizes as famílias oligárquicas? Como vão vicejar as fazendas imaginárias, as certidões falsificadas, os rituais das defraudações, as escrituras e contratos superfaturados? Que será da indústria da seca, não só da seca do solo, mas a seca mental, onde a estupidez e a miséria são cultivadas para o serviço da burguesia política? Como ficarão as amantes fixas, como se exercerão as doces camaradagens corruptas em halls de hotel, os almoços gordurosos, as cervejadas de bermudão e gargalhadas, a boçalidade autoritária, as "carteiradas", os subornos e as chaves de galão? Como serão os jantares domingueiros, como se manterão a humilhação e a fidelidade consentida das esposas de Botox, o respeito cretino dos filhos psicopatas? Como se manterá a obediência dos peões, dos serviçais analfabetos? Que será do "sistema" cafajeste e careta que rege o país?
E, por entre esse baixo clero, deslizam os "generais" da oligarquia. Sarney desliza com seu jaquetão de teflon, desliza como um cisne negro de bigode, como se vogasse numa lagoa de realpolitik nordestina. Sarney é um monumento a si mesmo, feito de literatura, 40 anos de poder inútil (o Maranhão é um deserto de miseráveis), narcisismo e allure de estadista calmo. Que defende Sarney? Ele é o defensor da continuidade do Atraso, da doce paz paralítica, é um guardião da tradição oligárquica, para manter a imobilidade do pântano colonial, do melaço imóvel nos tachos patrimonialistas.
É preciso entender que a absolvição de Renan Calheiros e sua resistência quase "heróica" respondem a uma ideologia molenga, mas muito poderosa e que não quer morrer! Não foram 40 ladrões; foram 40 resistentes em luta por seus direitos.
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