Estão matando nosso passado
Alguma coisa delicada desaparece no Brasil de hoje
Alguma coisa delicada desaparece no Brasil de hoje
....No corredor da casa de minha infância, no Rocha, na antiga Rua Guimarães, hoje Almirante Ari Parreiras, no fundo do corredor brilhava uma pequena imagem de Santa Terezinha do Menino Jesus, que minha mãe adorava. Com uma braçada de rosas no peito, um crucifixo na mão esquerda, ela está até hoje aqui, agora, na minha mesa, ao lado do computador. Não tem mais que um palmo de altura, está descorada pelo tempo, mas, na época, ela era fosforescente. Sim, uma tinta especial dava-lhe uma aura esverdeada que iluminava fracamente o fundo do corredor tão longo, como uma promessa de milagre, de esperança. Olho a pequena estatueta na minha mão. É tão pobrezinha, de massa, mas veio da França -- vejo no pedestal. O rosto da santinha está quase apagado, mas seus olhos são nítidos, dois pontos negros fixados no chão, a cabeça baixa, triste, não por ela mesma, mas como deprimida pelo mundo organizado à sua volta, nos objetos de minha mesa: o roteador wireless, o cellular carregando, os fios do iPod, numa estranha convivência que a faz, coitadinha, inatual e deslocada.
....Depois, no fim das matinês, esperava, como um pedinte, os fotogramas coloridas, restos de películas que arrebentavam nos projetores a carvão e que o velho projecionista do Palácio Vitória me dava, no caminho de casa. Eu olhava os fotogramas contra o sol, promessas de aventuras, múmias sinistras e rostas de princesas, cavalos a galope e beijos na boca, e eles me levavam para longe da minha rua. Quando passava com meu pai no velho Ford 46 em frente ao Morro da Mangueira, que eu achava sujo e quebrado, eu não entendia aquilo e lhe perguntava por que não "consertavam" o morro, e meu pai não respondia. Eu vivia assim, vendo a vida meio de fora, com medo de cair naquele mundo que eu não entendia, que me era nebuloso, inexplicável.
....Uma outra vez, lembro-me de uma visão melancólica e inesquecível. Nas ruas do Rio, andava um velhinho preto, quase um anão, que tocava discos com canções em 78 rotações numa vitrola: canções românticas, trechos de operetas, valsas vienenses, para ouvintes que lhe pingavam tostões. Chamava-se Camundongo (quem se lembra?) e tinha um velho caminhãozinho, um triciclo que ele improvisara e que ele movia com pedais. Tocava música nas ruas, Francisco Alves, Orlando Silva... por vinténs. Na solidão lírica daquele Camundongo, no assassinato da boneca loura, senti que queria voar para longe, junto aos urubus que via flutuando à distância, "dormindo na perna do vento" como me disse Tom Jobim muitos anos depois. Eu percebi que queria uma outra tristeza, mas não a tristeza geral de todo mundo que eu conhecia. Olho Santa Terezinha aqui na mesa e me lembro disso... Se escrevo sobre essas ínfimas lembranças, não é por falta de assunto, não.
....Já que não temos futuro, acho que pediria a volta ao passado. Alem de impedir o futuro, estão destruindo nosso passado. Estão matando as calmas tardes do subúrbio, apagando a ingenuidade dos comportamentos. Chego a sentir saudades até da precariedade de nossa vida antiga, de um mundo com menos gente louca e má. "Ah! Você por acaso quer a volta do atraso, da miséria terrível de antes?" -- dirão alguns. Não, claro que não. Mas quero a volta de alguma coisa perdida neste país, alguma coisa delicada que sumiu, minha santa, estou com saudades dos amores impossíveis, dos lugares-comuns, dos pactos de morte, do rubor nas faces, de chorinho e chorões, dos prantos convulsivos, dos valores toscos da classe média, do moralismo bobo, do português do botequim, do gato de armazém, do romantismo ridículo, dos pudores, dos desmaios das mulheres, das virgens nas luas-de-mel, de tudo que era baldio, de tudo que soava ingênuo, do futebol no rádio do porteiro, das tardes cinzas, dos banhos de mar, dos carnavais sem massas, pediria, sim, até a volta das ilusões. Isso eu pediria, sim, à minha Santa Terezinha, que conservo até hoje em minha mesa, com devoção de ateu."
2 comentários:
beautiful. i think two things, one, he is getting old, as you get older, you stop seeing new things in a good hopeful light, and you get stuck in the past, there are so many good things still around.
Another thing is, brasilians love to be tragically ot romantically dramatical.
its in the note of tom jobim, the sad heroines of lispector, the lyrics of chico buraque and in the beer glass on every corner boteco.
it's all lamentos or it's all alegria. it's never something balanced.
to me. anyway.
I think that in part you are right, but also I think that it is difficult to be balanced here when so much is out of whack. Daisy is so frustrated with things that she won't watch the Brazilian news -- I am so frustrated with the U.S. debacles that I only read the Brazilian news. But, I am hoping that you will show many delightful things in your new blog about botecos and such.
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